Professor Jean Carlos
Moreno, do Colegiado de História da UENP, lança sua nova publicação “QUEM SOMOS NÓS?: Apropriações e
representações sobre a(s) identidade(s) brasileira(s) em livros didáticos de
História (1971-2011)”, pela PACO EDITORIAL.
O professor, que é
coordenador do PIBID História e líder do Grupo de Pesquisa Ensino de História
da UENP, analisou um total de 66 livros didáticos e consultou mais 15
documentos oficiais referentes aos períodos estudados, além de matérias de
jornais para composição de sua obra. A seguir, a íntegra da entrevista
concedida à Revista UNESP CIÊNCIA
Entrevista com Jean C.
Moreno por Alice Giraldi
Unesp
Ciência. Recorte da
pesquisa: o discurso dos livros didáticos de História do Brasil, com foco no
período da colonização portuguesa, “do qual emergiam mais fortemente os
discursos identitários em capítulos preocupados com a formação sociocultural e
étnica da nação”. Por favor,
explicar melhor o conceito que aparece entre aspas: aqui, estamos falando
particularmente da forma como foi apresentando o povo brasileiro nos livros
didáticos, como resultado da mistura das três raças – branca europeia, indígena
e negra?
Sim. Os livros didáticos de
História apropriam-se de um léxico sobre o Brasil e os brasileiros, buscando
combater ou reforçar interpretações que circulam na sociedade como um todo,
construindo, assim, respostas para a
questão “quem somos nós?”. Trabalhamos no livro com a noção de representações
fundadoras, as quais seriam representações
que, por sua constante reiteração, acabam tendo um peso maior, instalando-se
com certa profundidade no imaginário social. Mesmo as construções
discursivas que intentam superar ou combater estas representações têm
forçosamente que negociar sentidos com elas. Ainda que permeadas por apropriações conflitivas, são estas
representações que dão sustentação às nossas formas do social. Por uma série ]de fatores, dentre eles a própria
continuidade da dinastia portuguesa no processo de independência do país,
construíram-se e reforçaram-se representações nas quais o ano de 1500 marca o início da história do
país, o surgimento do ‘Brasil’. Por isso, nas intrigas construídas pelo
discurso histórico, é no período colonial onde se vê mais claramente as narrativas de brasilidade, como se as
relações construídas neste período determinassem o ‘caráter’, a ‘essência’ do
Brasil e dos brasileiros. Você tem razão em apontar a relação entre os diversos
sujeitos sociais racializados – índios, brancos e negros – como o cerne dessas
representações. Subjacentes às relações sociais estabelecidas emergem
representações da sociedade brasileira que evocam, conforme o período estudado,
harmonia, pacificidade, mas também violência, desigualdade social e dominação.
Unesp
Ciência. Recorte
histórico, 40 anos de produção didática de História: quais motivos nortearam a
escolha das décadas de 1970, 1980 e 2010 como períodos de estudo?
A periodização é uma das
tarefas mais complexas com as quais se defrontam os historiadores. Em nosso
caso, desde o início nos propomos a colocar os discursos dos livros didáticos
em diálogo diacrônico, quer dizer: pensar as mudanças e permanências ao longo
do tempo. A organização a que chegamos coincide com certa periodização
política, mas ela se definiu a partir também do contato com as fontes
históricas, no nosso caso, os próprios livros didáticos e a legislação escolar.
O primeiro período, delimitado entre 1971 e 1979, (analisado em nosso segundo
capítulo: “Produção Didática de História e Representações Identitárias sob o
Estado Autoritário”) é marcado pela existência de uma ditadura, cujos interesses
poderiam apontar alguma continuidade na produção didática de História e nos
discursos identitários estruturados desde os finais do século XIX e
reelaborados no período do Estado Novo. Contudo, a década de 1970 é significativa
também porque há a ampliação do público escolar, com a expansão dos sistemas
públicos de ensino, a implantação do Ensino de Primeiro Grau e a extinção do
exame de admissão. É também um momento de intensa expansão e ‘industrialização’
da produção dos livros didáticos, com subsídios governamentais e isenção de
impostos a toda a cadeia produtiva. Por fim, este período torna-se também importante
devido à proposta oficial de implantação dos Estudos Sociais, que trazia
consigo uma reelaboração instrumental da história escolar.
No segundo período (abordado no terceiro capítulo: “O
Campo em Aberto: a Produção Didática de História após a Abertura Política”), delimitado entre 1985 e
1992, objetivávamos entender como se comportavam os discursos didáticos
sem a sombra da vigilância de um Estado autoritário. A transição de regime
político aguçava a relação entre a educação e a realidade social, com a
História, por vezes tomando o primeiro plano nestes embates. O
restabelecimento da democracia política, e as discussões em torno das reformas
curriculares em âmbito estadual aproximaram a educação com demandas oriundas dos movimentos
populares com os quais a educação escolar como um todo e mais especificamente o
ensino de História dialogaram intensamente. Por outro lado, continuou, no
período, a expansão do mercado editorial, acompanhando o crescimento da
matrícula escolar.
Já o terceiro recorte (que
se refere a nosso quarto e último capítulo: Identidades e Livros Didáticos de História após 20 Anos de Democracia
Política) analisa os livros aprovados pelo PNLD 2011, programa
governamental, fruto de um investimento intenso da sociedade brasileira sobre
os livros didáticos; investimento este que envolve, além da distribuição dos
materiais aos estudantes, especialmente, a avaliação dos livros por equipes
acadêmicas de área, ligadas às universidades públicas. O desenvolvimento do
programa em sua segunda fase (1995 em diante) levou a todo um reajustamento do
mercado editorial de livros didáticos. O período é marcado pelo amadurecimento
também de demandas importantes. Seguindo uma tendência mundial, há uma
discussão mais forte sobre a diversidade cultural e a perspectiva de alteridade
na escolarização. A pressão, contínua, dos grupos sociais, especialmente dos
movimentos negros e indígenas, para serem tratados, no passado e no presente,
como sujeitos de sua própria história, fez vir à tona as Diretrizes
Curriculares para a Educação Étnico-raciais. Fortaleceu-se uma demanda por
restringir, nos livros didáticos, as representações de diversos sujeitos
sociais ‘apenas’ como vítimas da violência física ou simbólica.
Concomitantemente, uma historiografia, bastante consistente, sobre o período de
colonização europeia se consolidou e corroborou nesta leitura ao salientar as
estratégias, astúcias, resistências cotidianas e trocas culturais entre os
diversos grupos que conviveram na América Portuguesa. Tudo isso apontou para a
possibilidade de uma renovação das obras didáticas de História e para uma
possível rearticulação dos discursos sobre a(s) identidade(s) dos brasileiros
presentes nas obras didáticas de História.
Unesp
Ciência. O livro
introduz o conceito de representações da identidade
brasileira como “produtos”, que têm uma origem social. Poderia explicar as
categorias propostas por Roger Chartier?
Bem, Chartier é um autor bastante conhecido e debatido na área de
História. Uma de suas principais contribuições está em construir, desde meados
dos anos 1980, uma proposta de História Cultural de inspiração sociológica,
dando possibilidades de se pensar a História como ciência, avistando um caminho
entre a falência dos modelos macro-explicativos e a ascensão do discurso pós-moderno.
Na proposta de Chartier, o acesso ao real se dá através de suas representações,
os esquemas intelectuais próprios de cada grupo. Na busca de perceber como as
clivagens sociais são construídas culturalmente, Chartier vai argumentar que
cada grupo descreve a sociedade tal como pensa que ela é ou como gostaria que
fosse. Assim, as representações tornam-se um conceito chave para a compreensão
dos enfrentamentos sociais.
Chartier rebate a idéia de que o trabalho com as representações
implicaria excesso de subjetividade e, portanto, um distanciamento do real.
Para isso faz uma retomada de Durkheim e Mauss, ressaltando a origem social das
representações. Embora possam conquistar autonomia e parecer auto-suficientes,
as categorias lógicas, as representações, que estabelecem classificações e
organizam a percepção do mundo, têm origem social. Também por isso, as lutas de
representações são tão importantes e definidoras do social quanto as lutas mais
diretamente econômicas.
Permeia toda a concepção de Chartier, a idéia de que o leitor (e o raciocínio estende-se às demais
práticas de consumo cultural) não é como ‘cera mole’. Esta relação móvel entre texto e leitor conduz a outra noção central
da proposta do
historiador francês, a apropriação. A prática diferenciada de interpretação é o que possibilita a
dissensão. De uma operação a outra se produz a ruptura, a alteração de sentido.
As representações do mundo social, colocadas num campo de concorrência são
apropriadas pelos indivíduos e grupos, conforme seus referenciais e interesses,
construindo, então, novas representações.
Foi assim que interpretamos a produção dos livros didáticos,
entendendo o seu conteúdo e a sua forma como um produto de práticas de apropriação
de diversos referenciais e determinantes. Os autores são ao mesmo tempo
receptores e construtores de representações dos discursos que circulam na
academia, na mídia, nos debates políticos e educacionais, etc.
Unesp
Ciência. O senhor diz
que “a questão das identidades tornou-se temática incontornável para quem quer
compreender o mundo contemporâneo”. Poderia explicar?
Percebe-se um processo em que as disputas identitárias se tornam
espécie de fio condutor das democracias contemporâneas. Grupos diversos buscam,
por um lado, a afirmação das diferenças e, por outro, a validação destas
diferenças dentre os iguais do
paradigma iluminista que sustenta o Estado-nação. Neste sentido, trata-se de
uma disputa de - e por - poder.
Cabe destacar que as identidades são representações, figuras
discursivas, cuja sustentação remete a experiências históricas. Por isso, o
passado é objeto de embates políticos e disputas materiais e simbólicas.
Unesp
Ciência. Quem está
por trás das representações da identidade brasileira presentes nos livros
didáticos nos anos 1980 e 1990, ou seja, quem foram os autores dos livros
nesses períodos? Também houve uma influência, na identidade dos brasileiros que
esses livros introduzem, de outros atores, como editores, acadêmicos e gestores
governamentais da área de educação, por exemplo?
Em todos os períodos analisados convivem diversas gerações de
autores. No caso a que você se refere pode-se destacar obras paradigmáticas do
período de abertura política com um texto mais “livre” que torna a narrativa
mais “viva”, axiologização mais evidente dos conhecimentos históricos,
incentivo à mobilização e busca de um rompimento explícito com a concepção da
sociedade brasileira harmoniosa. Estas obras e seus autores têm forte
vinculação com os movimentos populares e com os discursos sociais de oposição ao
regime militar. No âmbito acadêmico, os textos produzidos por uma comunidade
vinculada à área do ensino de História também propugnavam uma empatia com as
camadas populares, considerando a experiência de vida dos estudantes e dando voz a sujeitos que não tiveram espaço
nas narrativas construídas e reafirmadas desde o século XIX. Esta discussão
também estava presente como pano de fundo das reformas curriculares estaduais.
Percebe-se, então, que mesmo as editoras tradicionais do mercado didático
foram muito ágeis em compreender o novo contexto político brasileiro e atender
às novas demandas do ensino de História, não receando em propagar discursos
ideologicamente comprometidos com uma postura de ruptura política.
Unesp
Ciência. Qual é a
importância da iconografia (imagens) nesses livros, no que diz respeito à
representação da nossa identidade? Por favor, citar exemplos.
As imagens escolhidas por
autores e equipe editorial são, de fato, bastante importantes na composição de
um discurso identitário. A utilização de imagens não é uma característica
exclusiva da disciplina de História, mas seu uso ganha caráter específico por
seu estatuto de documento; o referente, direto ou indireto, das imagens
históricas está, geralmente, no passado.
Em muitos casos, as
imagens reproduzidas nos livros didáticos sobre o período mencionado tratam-se
de pinturas e gravuras ‘históricas’ – desenhos de viajantes e os quadros
“históricos” elaborados pela Academia Imperial de Belas Artes no século XIX -,
empregadas como testemunho do passado, espécie de comprovante dos fatos. Pela
sua constante repetição, estas imagens acabam se tornando ponto de referência
de identificação coletiva. Neste caso, destacam-se as imagens que buscam
construir ou reforçar representações
fundadoras da história nacional como A
Primeira Missa no Brasil ou A Batalha
dos Guararapes, ambas de Victor Meirelles.
Em diversas obras, as
imagens vão muito além da idéia de mera ilustração. A maioria das imagens
utilizadas pelos produtores dos livros não são aleatórias ou ‘somente’ recurso
comercial. Em algumas obras as imagens se constituem em soluções didáticas
fundamentais. Elas conduzem a narrativa e a sua interpretação. Por vezes,
produzem um sentido antes da leitura do texto, dando significado aos conteúdos
históricos.
É o caso, por exemplo, de
obras (da década de 1970 e, especialmente dos anos 1980) em que as charges
ocupam papel central como elemento de comunicação visual. Nelas fica ainda mais
visível a força da imagem na construção de um sentido para os conhecimentos que
estão sendo trabalhados. Com recurso ao humor e à ironia, as charges são
utilizadas para problematizar e potencializar os conteúdos abordados, na
maioria das vezes com intenção iconoclasta, para justamente colocar em xeque as
representações arraigadas no imaginário brasileiro.
Nos livros atuais,
referentes ao PNLD 2011, ganham destaque representações positivas sobre os
povos africanos e os cidadãos afro-brasileiros. Imagens do continente africano,
com grandes cidades, produção cultural e intelectual e pessoas em situações
positivas de trabalho e lazer buscam impactar sobre a auto-estima e o orgulho
de nós brasileiros por nossa ascendência africana. É interessante pensar que precisamos de uma
lei para que isto acontecesse!
Ressalte-se, ainda, neste
caso, que esta é uma tendência que ainda não atinge todas as obras, mas aquelas
que o fazem, não deixam de manter certa criticidade apresentando também os
problemas estruturais que envolvem o continente africano e a situação dos
afrodescentes no Brasil no passado e no presente.
Unesp
Ciência. Como avalia
a obra do jornalista Leandro Narloch, autor do Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil? O senhor diz
que ela faz pensar sobre “os usos sociais do discurso histórico e, mais
especialmente, sobre as relações entre a história escolar e a história
acadêmica”. Por favor, poderia explicar melhor esse conceito? A obra de Narloch
localiza-se no grupo da história acadêmica? Há diferenças profundas entre esses
dois grupos? Por que?
Puxa, esta questão daria um
outro livro com mais 400 páginas! Utilizamos em nosso trabalho algumas
considerações de Narloch para ilustrar as apropriações do discurso histórico e
também leituras que são feitas sobre os livros didáticos de História. No caso, os
discursos de Narloch têm por inspiração um conjunto de reações de parte da
tradição conservadora norte-americana à afirmação das minorias através de uma
série de obras que têm por título The
Politically Incorrect Guide.
Embora prolixo, o eixo
central do texto de Narloch assenta-se sobre o discurso engajado dos livros
didáticos e, especialmente, sobre questões relativas à escravidão e à situação
de africanos e indígenas na América Portuguesa.
Os historiadores brasileiros
têm empreendido análises mais complexas sobre a América Portuguesa e as
relações sociais no período de colonização, procurando superar dicotomias
exacerbadas, sobredeterminações estruturais e ressaltando espaços de negociação
para os diversos sujeitos históricos. Contudo, desconheço historiadores atuais que
neguem a violência física e simbólica como um componente intrínseco destas
relações sociais travadas durante a colonização portuguesa da América.
O que Narloch faz é pinçar
algumas conclusões destes historiadores para utilizá-las em sua argumentação. Aproveita-se
das fragilidades da história oficial e, especialmente, de uma história
“engajada” (com relação à participação popular e às desigualdades sociais) para
instaurar um discurso relativista, utilizando, em seus textos, excertos de
análises acadêmicas, ou, nas suas palavras, “científicas”.
Com relação à outra parte da
sua questão, a relação entre o saber acadêmico e o saber escolar é bastante
complexa. Para não nos estendermos, poderíamos salientar que há uma diferença
de natureza e não apenas qualitativa entre as duas formas de conhecimento
produzidas. Fundamentalmente, o conhecimento escolar tem em vista a produção da
aprendizagem que deve se concretizar em um locus
específico, a escola, e, portanto, deve pressupor, em sua organização, as
relações de interação e progressão que são inerentes à escolarização. Portanto,
tendo finalidades e objetivos distintos da produção acadêmica, a história
escolar precisa atender a demandas diversas e selecionar conteúdos possíveis de
serem trabalhados conforme o seu público, os recursos disponíveis e o seu
funcionamento institucional. Competências cognitivas, morais e comportamentais
estão no horizonte do objetivo de formar novas gerações e o texto
escolar deve ir além da transmissão/comunicação de conclusões de pesquisa, para
conseguir promover a compreensão, a alteração de esquemas mentais, o
questionamento de pré-concepções, e instaurar novos habitus.
Contudo, segundo Jörn Rusen, há propósitos
que os dois lugares institucionais (escola de ensino básico e pesquisa
acadêmica) comungam: o desejo de apontar e superar as fragilidades da memória,
do senso comum e suprir a carência de
orientação no mundo.
Daí se entende a importância de colocar em discussão e enfrentar
discursos não acadêmicos com os de Leandro Narloch. Há solidariedade entre a
interpretação do passado, o presente e o projeto de futuro e o que está em jogo
por trás das disputas pela identidade e pela escolarização pública é
demasiadamente importante para ser relegado à indiferença.
Unesp
Ciência. O quanto
autores como Gilberto
Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro, com suas obras que
apresentam análises da identidade do povo brasileiro, influenciaram a produção
dos livros de História do Brasil usados nas escolas?
Não quantificamos em nossa produção
a presença de interpretações oriundas deste ou daquele autor. Mas, podemos
comentar alguns traços mais gerais.
Dos autores que você
referencia, o que é mais apropriado
pelas produções didáticas é Gilberto Freyre. Na verdade podemos falar de uma outra
tríade, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes.
Gilberto Freyre é quase
onipresente. A polissemia do seu texto o faz apropriado por obras com os mais diversos posicionamentos
políticos.
Apesar de não abordar
diretamente questões de identidade, Caio Prado Júnior é referência central para
a idéia de um sentido da colonização apropriada
pelos livros didáticos e esta idéia tem impacto sobre o discurso a respeito de
quem somos nós, os brasileiros.
Já Florestan Fernandes é
referência importante, especialmente nos dois primeiros períodos analisados, na
questão da resistência indígena e no combate à idéia de democracia racial.
Unesp
Ciência. Seu livro
mostra que pesquisas de opinião nos anos 1990 revelaram que muitos de nós nos
víamos como um povo “ordeiro, pacífico, conformado, acomodado”, vivendo numa
espécie de Éden, um país democrático e sem discriminações. Os recentes
movimentos, passeatas e reivindicações que invadiram as ruas brasileiras mostram
que mudamos de ideia a respeito do país e de nós mesmos?
Nem sempre uma análise no
nível das representações pode coincidir com as práticas sociais efetivas. Neste
sentido, ao contrário do que dizem as representações mais disseminadas, uma
parte significativa do povo brasileiro manifestou-se e lutou por seus direitos
em diversos momentos de sua história. É possível dizer que a resistência às
comemorações dos 500 anos e as conquistas recentes dos movimentos negros e os
embates que envolvem as populações indígenas são indícios de que o discurso das
desigualdades harmônicas e da pacificidade não teria sustentação racional na
atualidade. Mas as representações e a realidade estão envolvidas em batalhas e
há sempre um outro lado que deseja que tudo continue como “sempre foi”.
Unesp
Ciência. Grande parte
dos jovens que vão às ruas hoje reivindicar, entre outras coisas, a melhoria
dos serviços públicos, iniciaram a vida escolar durante os anos 1980, “um
momento de efervescência política no país” e de “uma aproximação com ideários
provindos de movimentos populares”, segundo a tese. O quanto esses jovens que
hoje saem às ruas teriam sido influenciados pelo conteúdo dos livros didáticos
e pelo ensino de História em sua vida escolar?
A pergunta é bem encaminhada quando conjuga o conteúdo dos livros
didáticos e o ensino de História. Mais do que para serem lidos, os livros
didáticos são objetos produzidos para serem “usados”. É o uso escolar feito
pelos professores de História que lhes confere sentido. Além disso, é preciso
considerar que a escola não é o único lugar onde os estudantes formam sua
“consciência histórica”. Há discursos históricos em circulação no ambiente
familiar, na grande mídia, nas congregações religiosas e nas redes sociais. O
ensino escolar de História é um ambiente importante onde toda esta gama de
referências pode ser posta em discussão, mas se necessitaria de outra forma de
pesquisa para traçar uma relação mais direta entre o que se discute nas escolas
e o ativismo social. Eu e, acredito, a grande maioria dos professores de
História lutamos para que os conteúdos discutidos nas aulas tenham significação
para a vida dos estudantes e que as reflexões daí decorrentes sirvam, também,
para orientar sua vida prática.
Unesp
Ciência. O senhor
afirma que os livros didáticos de História aprovados pelo PNLD em 2011 estão mais
próximos da História produzida no ambiente acadêmico e que esses livros
“procuram apresentar os dois lados da questão”.
Poderíamos dizer, então, que finalmente os estudantes de hoje estão
recebendo um ensino de História que apresenta uma imagem mais realista e
equilibrada do Brasil e dos brasileiros do que aquele que foi oferecido às
gerações anteriores?
Falando como professor que
trabalha com a formação de professores, posso avaliar uma melhoria da qualidade
dos livros didáticos de História com o desenvolvimento do PNLD. Eliminaram-se
erros crassos e algumas obras trazem propostas pedagógicas bastante
interessantes que, se implementadas em sala de aula, trariam acréscimos na
aprendizagem histórica dos estudantes.
Mas a pesquisa que
empreendemos não chega a esta análise de valor. Como afirmamos em nossas
conclusões, constatamos que as obras do PNLD 2011 buscam um distanciamento em
relação à produção anterior (dos finais dos anos 1980) estabelecendo como o
interlocutor principal da produção didática escolar uma história acadêmica
renovada. Procura-se, assim, evitar maniqueísmos, julgamentos de valor sobre as
experiências do passado e os estereótipos de personagens históricos, produzindo
uma história menos iconoclasta do que a que foi proposta anteriormente.
Produz-se um distanciamento em relação ao passado, marcado também pelo menor
uso do tom emocional e mobilizador na linguagem. Com a diminuição do julgamento
ético-moral sobre o passado, a busca do convencimento seja pela argumentação
persuasiva, pela comoção, compaixão ou pela ironia também retrocede.
Contudo,
nesta multiperspectividade, tentando
apresentar “os dois lados da moeda” através de textos de historiadores ou
documentos históricos, a imparcialidade - em que o posicionamento de valor e a
atribuição de sentido seriam transferidos ao estudante ou ao professor em sala
de aula - como não poderia deixar de ser, é apenas aparente. O fenômeno da apropriação por parte de autores e
editores continua acontecendo. Os documentos escolhidos são fruto (também não
poderiam deixar de ser) de uma interpelação à história acadêmica, onde as
questões sociais prementes, exigências legais e a leitura a respeito do público
consumidor limitam e impulsionam o projeto formador construído por autores e
editores.
Talvez
faça parte da estrutura básica da disciplina de História a tentativa de
equilíbrio entre o rigor da ciência (no sentido do uso de informações
“verdadeiras”) e a formação de valores. Percebe-se, até pelo fortalecimento da
História acadêmica com a multiplicação dos cursos de pós-graduação e edição de
livros no Brasil, que nas obras didáticas do PNLD 2011, mais do que em outros
períodos, as finalidades, cívico-moral e acadêmica (de transmissão/atualização
dos conhecimentos produzidos pela academia), atribuídas ao ensino de História,
estão sob tensão.
Isso tudo reforça nossa
perspectiva de que o conteúdo dos livros didáticos, com suas dúvidas,
reticências e hibridismos, revela, em parte, as dificuldades, consensos,
digressões e divergências da própria sociedade brasileira em lidar com o seu
passado, seu presente e seu projeto de futuro.